Após décadas abraçando a medicina, José Capuano é encorajado a registrar seu primeiro EP, avalizado por Ná Ozzetti, Flávia Virgínia, Regina Machado, Cintia Zanco e Daniel Carlomagno
Por Rodrigo Faour
Nascido em 1967, o paulista José Capuano desde cedo já tocava piano e violão, estudando com professores particulares, depois na Escola Municipal de Música. Já em terras cariocas, fez faculdade de Música na UniRio, mas acabou enveredando profissionalmente pela medicina, sem jamais abandonar sustenidos e bemóis. Chegou até a integrar o grupo vocal Equale e a tocar piano em restaurantes, sempre admirando à distância a turma conhecida como Vanguarda Paulista, de Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e do Grupo Rumo, ao lado de referências paternas – a música clássica de Beethoven e Mozart – e maternas, o gosto pela MPB, incluindo Elis Regina – a mãe adotava até o mesmo corte de cabelo da Pimentinha. Foi em São Paulo, entretanto, que travando contato com a cantora Flávia Virgínia, ganhou o incentivo definitivo de registrar suas composições, que chega agora às plataformas de streaming, no EP Do Tempo.
Trata-se de uma leva de cinco canções criadas por ele ao longo da vida, devidamente arranjadas pela maestrina Cíntia Zanco, outra incentivadora de primeira hora, produtora de quatro das cinco faixas do álbum. “Mostrei minhas músicas pra ela em voz e violão e ela perguntou: ‘Você gostaria que eu fizesse um arranjo seu?’”, relembra Capuano. “Gravamos a primeira música em fevereiro, e o resultado me deixou encantado”. Cíntia percebeu ali o potencial de um compositor que une sofisticação harmônica e melodia expressiva: “As canções do José Capuano mereciam ser bem tratadas”. E vai além: “São melodias talhadas na melhor tradição da MPB. Quis dar a elas um efeito de luxo, com som orquestral, misturando minha vivência da música erudita e popular.” Não é à toa que o EP tem a participação de músicos da Orquestra Brasil Jazz Sinfônica, onde Cíntia Zanco, também violinista, faz parte.
Além dela, a gravação do EP Do tempo reuniu intérpretes fortes de diferentes estilos da MPB, como Ná Ozzetti, Flávia Virgínia e Regina Machado, e foi masterizado por Homero Lolito, engenheiro de som e produtor de renome, ganhando ainda mais requinte, por equacionar doses certas de vigor e sofisticação.
O EP Do tempo, faixa a faixa
A faixa-título abre os trabalhos. Composta originalmente nos anos 1990, a letra foi reelaborada recentemente e remete à quebra de amarras temporais, afirmando que “Tudo passará, o tempo levará”. “Do tempo tem conexão direta com a impermanência. Refiz a letra para expressar essa transformação interior”, explica Capuano. Flávia Virgínia, que havia gravado a canção décadas atrás, voltou ao estúdio para reinterpretá-la. “As músicas do José Capuano já me encantavam quando tínhamos 20 anos e hoje continuam me emocionando. Ele lembra a essência, a canção em si”, elogia. A opção de Cíntia Zanco por um quarteto de cordas e tessitura orquestral conferiu à canção uma atmosfera contemplativa, como se o tempo realmente se expandisse entre as notas.
A seguir, “Viverei um Grande Amor”, nasceu do encontro entre José Capuano e Ná Ozzetti, sua professora na escola de canto de Regina Machado. “A Ná me ensinou a trazer a voz para a região da fala, algo essencial na música popular”, conta o compositor. “Durante o curso, criei coragem e a convidei para cantar uma música minha. Ela aceitou, foi muito generosa comigo”. Ozzetti, por sua vez, descreve a experiência como um gesto de troca e descoberta: “O que me motivou foi conhecer o José Capuano pessoalmente e me impressionar com suas composições. É gratificante ajudar a dar voz aos artistas que lançam seus trabalhos. Música é linguagem coletiva”, ensina a veterana intérprete de voz delicada, perfeita para versos sobre a aurora do dia que “Busca no fundo do mar / A pérola da canção / Que irá tocar seu coração”. Não é à toa que o EP tem a participação de músicos da Orquestra Brasil Jazz Sinfônica, onde Cíntia Zanco, também violinista, faz parte.
Já a mencionada Regina Machado comparece em “Recomeço”, uma bossa nova das mais requintadas, com direito a instrumentos sinfônicos no arranjo, como trompa e clarinete, e letra romântica. “Escolhi para ela a música mais difícil, em harmonia e melodia”, confessa José Capuano. “A canção é sensível, delicada e emotiva. O arranjo da Cíntia Zanco a fez crescer muito”, enaltece a intérprete, compositora e também professora.
A quarta faixa, “Era fevereiro”, segundo o autor, “fala de um sonho, de uma revelação, é muito alegre e solar!”. Emula uma atmosfera carnavalesca onírica, ainda em levada romântica, embaralhando imagens poéticas alusivas a esse impulso dado, por fim, à sua carreira artística: “Eu sonhei que dançava na chuva / um frevo em fevereiro / Rosas brancas no céu / Um véu de estrelas no mar / Sobre o Rio de Janeiro / Eu via tudo por inteiro / Como nuvens a brilhar”.
A faixa de encerramento, “Concha mágica”, foi bastante determinante neste processo de “saída do armário musical” de José Capuano. Produzida por Daniel Carlomagno e de teor mais pop, simboliza justamente a expansão de seu universo musical, um diálogo entre artistas de gerações distintas. A propósito, esta faixa, com ênfase nos contratempos rítmicos, em 6/8, foi gravada em dueto com Flávia Virgínia, sendo também uma homenagem afetiva e simbólica ao referido Djavan, mestre que sempre o inspirou, pela sofisticação melódica e harmônica e pela fusão entre espiritualidade e poesia.“A levada de ‘Concha mágica’ me lembra uma kalimba, criando ciclos que remetem às ondas do mar”, explica o produtor. “Depois de gravar a voz do José Capuano, convidamos a Flávia Virgínia, e tudo ficou ainda mais bonito”, completa ele, afirmando que a canção tem algo da tradição sofisticada da nossa MPB. Combina leveza pop e espiritualidade, evocando viagens pela África e pela Ásia como metáforas do autoconhecimento.
Propósito e caminho
É perceptível a léguas de distância que o compositor acredita no poder curativo e acalentador da música, na contramão dos comercialismos excessivos e agressivos do hit parade contemporâneo. “Sempre quis oferecer uma música bonita às pessoas”, resume José Capuano. “Reuni as mais belas que tinha guardadas e, agora, com as condições certas, pude executá-las profissionalmente”, anima-se. Na verdade, sua maior ambição é que suas canções transcendam o nicho dos músicos e encontrem o público comum.
Seus planos, aliás, não se encerram com a realização do sonho de gravar seu primeiro EP. Ele já prepara novas composições em parceria com Daniel Carlomagno. Seus planos, aliás, não se encerram com a realização do sonho de gravar seu primeiro EP. Ele já prepara novas composições em parceria com Daniel Carlomagno.
Nada como o tempo para trazer à tona, no momento oportuno, canções certas para corações exatos, abrindo e auscultando o peito com outros instrumentos, muito além do estetoscópio. Nossa sensibilidade agradece.
Rodrigo Faour – jornalista, crítico de música e autor literário